Civilização Tupi-Guarani/História

Segundo a teoria mais aceita pelos estudiosos, os povos indígenas da América são procedentes de migrações de povos asiáticos, que alcançaram a América através do Estreito de Bering entre 1100 e 1150 anos antes do presente (embora uma teoria mais recente levante a hipótese de ter ocorrido também uma migração anterior de povos aparentados com os africanos e aborígens australianos).[1] De lá, eles provavelmente desceram ao longo do continente americano até atingir o extremo sul da América do Sul. Um desses povos diferenciou-se dos demais e desenvolveu uma língua proto-tupi, no sul da Amazônia, por volta do século V a.C. (provavelmente na região do atual estado brasileiro de Rondônia. Embora uma hipótese alternativa aponte a região dos rios Paraguai e Paraná como o centro original da dispersão tupi-guarani).[2]

Mapa mostrando as migrações humanas. À esquerda, a Ásia; ao centro, a América do Norte e, à direita, a América do Sul.
Pintura do neerlandês Albert Eckhout do século XVII retratando um índio tupi
Uma índia tupi e seu filho retratados por Albert Eckhout
Plantação de mandioca
Quadro de Oscar Pereira da Silva retratando o desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500. Os primeiros índios contatados pelos portugueses no Brasil foram os tupiniquins.
Tibiriçá, líder tupiniquim aliado dos portugueses na região da atual cidade brasileira de São Paulo, a qual teve origem num aldeamento jesuítico
Cunhambebe, líder tamoio, retratado por André Thevet no século XVI
Desenho do livro autobiográfico de Jean de Léry mostrando saudações lacrimosas entre europeu e índia tupi, um costume tupi
Desenho do livro autobiográfico de Hans Staden retratando a execução de um prisioneiro dos índios tupinambás que está amarrado à corda muçurana. À esquerda, um índio segura o porrete tupi ibirapema com o qual irá desferir o golpe fatal contra o prisioneiro.

De lá, ele se expandiu no início da era cristã pelo leste da América do Sul, dividindo-se em várias tribos falantes de línguas derivadas desse idioma proto-tupi e que constituiriam o tronco linguístico tupi: tupinambás, potiguares, tabajaras, temiminós, tupiniquins, caetés, carijós, guaranis, chiriguanos etc.[3][4] Os tupis começavam a desenvolver a agricultura, principalmente de mandioca, que era um dos alimentos básicos de sua dieta. A agricultura era praticada pelo sistema de queimada, que limpava e adubava com as cinzas o terreno para o plantio. A caça, a pesca e a coleta de frutas e raízes completavam sua dieta.

Em suas migrações através da América do Sul, os tupis eram orientados por líderes religiosos, os karai[5], que lhes prometiam um paraíso ao final da jornada: a chamada "terra sem males" (em guarani, yvy marae[6]). No século V, um grupo de índios tupis da região da Bacia Platina começou a se diferenciar dos demais, vindo a constituir os chamados índios guaranis[7].

No século XV, guaranis que habitavam o leste do atual território paraguaio se deslocaram para o noroeste, atravessando a região do Chaco e escravizando e se mesclando aos chanos, que eram uma população de língua pertencente ao grupo aruaque. Se fixaram, então, no sul do atual território boliviano, nos limites do Império Inca, com o qual passaram a ter constantes conflitos. Os incas passaram a chamar depreciativamente esse povo de chiriguano, porém eles preferiam se referir a si mesmos como guaranis avás. No século XVI, com a chegada dos colonizadores europeus, alguns povos tupis, como os temiminós, os tupiniquins e os tabajaras, se aliaram aos portugueses, enquanto outros, como os potiguares, caetés e tamoios, se aliaram aos franceses. Os carijós e os guaranis se aliaram aos espanhóis. Porém o resultado era sempre o mesmo: destruição das aldeias indígenas, escravização, doenças trazidas pelos europeus e fuga das populações indígenas para o interior do continente e para os aldeamentos criados pelos padres jesuítas (as reduções ou missões, onde os índios eram catequizados, trabalhavam para os padres jesuítas e perdiam muito de sua cultura indígena).

Um importante fator que estimulou a escravização dos índios foi a falta de mulheres entre os europeus que chegavam à América. Com isto, o ataque a aldeias indígenas e o apresamento de índias tornou-se uma saída para a obtenção de mulheres. Os filhos dessas uniões, chamados de mamelucos, por sua vez, também tomavam parte nas expedições escravizadoras de índios em direção ao interior do continente, as chamadas "entradas e bandeiras"[8]. Os índios tupis reagiram contra essa política de escravização ou fugindo para o interior do continente ou atacando as povoações portuguesas no Brasil. Uma importante rebelião tupi contra os portugueses foi a Confederação dos Tamoios, que reuniu os tupinambás desde Cabo Frio, no atual estado brasileiro do Rio de Janeiro, até Bertioga, no atual estado brasileiro de São Paulo, de 1554 a 1567. Os tamoios (termo que vem do tupi tamuya, "velho", significando que a revolta era incentivada pelos anciões das tribos) eram liderados por Cunhambebe e, posteriormente, por Aimberê[9].

Reflexos dessa confederação puderam ser encontrados no episódio da França Antártica, quando a França tentou criar uma colônia na Baía de Guanabara e aliou-se aos índios tamoios locais. A colônia francesa acabou por ser destruída pela aliança entre portugueses e índios tupiniquins e temiminós, episódio que culminou nas fundações das cidades do Rio de Janeiro (1565) e de Niterói (1567). A Confederação dos Tamoios só veio a ser destruída totalmente em 1567, na Guerra de Cabo Frio, com o ataque português ao último reduto tamoio nessa localidade do litoral fluminense e com a morte do líder tamoio Aimberê.

Muitos europeus dos séculos XVI e XVII que viveram durante algum tempo no continente americano descreveram os hábitos dos índios tupis em livros que se tornaram best sellers no continente europeu, como o alemão Hans Staden, os franceses Jean de Léry, André Thevet e Claude d'Abbeville, os portugueses Pero de Magalhães Gândavo e Gabriel Soares de Sousa e o florentino Américo Vespúcio. Foi um europeu quem escreveu a primeira gramática da língua tupi: o padre jesuíta espanhol José de Anchieta, que teve publicada sua Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil em 1595 em Coimbra, em Portugal. Os jesuítas costumavam aprender a língua das populações nativas para poder convertê-los ao cristianismo. Além da gramática, Anchieta também escreveu várias peças de teatro em tupi, sempre com a intenção de doutrinar os índios sobre a doutrina da Igreja Católica.

Nas representações dessas peças, Anchieta procurava se utilizar de referências culturais tupis, associando, por exemplo, o Deus cristão ao deus tupi do trovão, Tupã, assim como o diabo cristão ao fantasma tupi chamado Anhanga. Os jesuítas adotavam esse procedimento para serem mais facilmente compreendidos pelos índios. A predominância de escravos índios e de seus descendentes na população do litoral brasileiro fez com que a língua franca nessa região fosse o tupi, que, com o tempo, incorporou vocábulos portugueses e africanos e passou a ser chamado de nheengatu ("língua boa", traduzido do tupi), língua geral amazônica e língua geral paulista. O tupi era a língua mais utilizada pelos bandeirantes e missionários cristãos que exploravam o interior do Brasil, o que fez com que seu uso se difundisse por todo o território brasileiro. Em 1618, foi publicada uma versão em tupi do Catecismo Romano da Igreja Católica: era o Catecismo na Língua Brasílica, do jesuíta Antônio de Araújo.

O livro tinha a função de ajudar na catequese dos indígenas e foi o mais longo texto já publicado em língua tupi antiga[10]. No século XVII, no contexto da expulsão dos invasores neerlandeses do nordeste brasileiro, um importante nome foi o de Filipe Camarão, líder dos índios potiguares e aliado dos luso-brasileiros. As missões jesuíticas no interior do continente prosperaram, colhendo erva-mate e criando gado e abastecendo as colônias espanholas na Bacia do Rio da Prata. Nas missões, os índios eram catequizados pelos jesuítas em guarani e produziam refinadas obras de arte sacra (música, escultura, arquitetura e teatro).

Em 1639, o padre jesuíta peruano António Ruiz de Montoya, que vivia no Paraguai, publicou a primeira gramática da língua guarani: o Tesoro de la Lengua Guaraní, publicado em Madri, na Espanha[11]. Os jesuítas combateram o costume indígena da poligamia e forçaram os índios à prática da monogamia. No entanto, a grande concentração de índios nas missões despertou a cobiça dos bandeirantes paulistas, os quais faziam incursões frequentes em busca de mão de obra escrava. Como resultado, as missões se deslocaram cada vez mais para o interior do continente, procurando fugir da ação dos bandeirantes.

Por volta de 1700, uma etnia de língua tupi se diferenciou das demais, provavelmente entre os rios Xingu e Tocantins. Essa etnia viria a ser chamada de caapor[12]. Em 1750, com a assinatura do Tratado de Madri, a Espanha cedeu a região a leste do Rio Uruguai para Portugal e ordenou que as sete missões estabelecidas nessa região se transferissem para a margem oeste. Os missioneiros não concordaram em abandonar suas terras, o que desencadeou as Guerras Guaraníticas, nas quais os missioneiros foram derrotados por exércitos portugueses e espanhóis. Na guerra, morreu o famoso líder guarani Sepé Tiaraju. A guerra foi retratada no clássico da literatura árcade brasileira do século XVIII O Uraguai (1769), de Basílio da Gama. Mesmo derrotados, os missioneiros continuaram presentes na Bacia do Rio da Prata, vindo a constituir-se numa das principais etnias formadoras dos típicos vaqueiros dos pampas: os gaúchos.

A literatura árcade brasileira do século XVIII ainda produziria um outro épico que retratava os costumes dos macro-tupis: Caramuru (1781), de Santa Rita Durão. O livro retrata a saga de Diogo Álvares Correia, náufrago português na Baía do século XVI que viveu entre os tupinambás do Recôncavo Baiano, pelos quais foi apelidado de Caramuru (termo tupi que significa "que ronca, poderoso"[13]), numa alusão à espingarda usada pelo náufrago português. Ou então, significaria "lampreia"[14] e seria uma referência ao fato de Diogo ter sido encontrado pelos índios tupinambás camuflado em meio às pedras e algas da arrebentação, como se fosse uma lampreia.

No litoral brasileiro, o aumento da imigração portuguesa por causa da descoberta de ouro no Brasil no final do século XVII, a expulsão dos jesuítas (que mantinham escolas onde o tupi era o idioma usado no ensino) do Brasil e a proibição do uso do idioma tupi no Brasil pelo Marquês de Pombal (ambos em 1759) determinaram a progressiva redução da influência do tupi na região até sua substituição total pelo português como língua franca ao longo do século XVIII. No entanto, sua influência permaneceu sob a forma de um expressivo vocabulário de topônimos (Piratininga, Itaipu, Ubatuba etc.) e de nomes de animais e vegetais (jacaré, jabuti, jabuticaba etc.), bem como na forma de uma língua portuguesa com pronúncia, tempos verbais e colocações pronominais diferentes dos de Portugal.

Em 1822, o Brasil se tornou independente de Portugal. Isso fez com que a nova nação se voltasse para a cultura indígena como símbolo de sua autonomia. Uma das consequências desse surto nacionalista foi a criação do gentílico "carioca" (termo tupi que significa "casa de cascudo", "casa de branco"[15] ou "casa de carijó"[16]) para os naturais da cidade do Rio de Janeiro, em 1834 e a alteração do nome da Vila Real da Praia Grande para Niterói (outro nome tupi, significando "água escondida") em 1835. Esse interesse pela cultura indígena como símbolo do jovem país também se refletiu na literatura romântica brasileira do século XIX. O poeta brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864) escreveu vários poemas com temática tupi, como "I-juca-pirama" (1851) e "Os Timbiras" (1857). Embora este último apresente um título equivocado, pois os timbiras pertencem, na verdade, ao tronco linguístico macro-jê. Na obra, Gonçalves Dias descreve típicos costumes dos índios tupis, imputando-lhes erroneamente aos timbiras[17].

Ao longo do século XIX, os índios paiter-suruís emigraram da região de Cuiabá, no atual estado brasileiro de Mato Grosso, para a região do atual estado de Rondônia, fugindo do avanço da sociedade brasileira[18]. Em 1857, José de Alencar escreveu "O Guarani", clássico da literatura brasileira que tem como protagonista o índio guarani Peri[19] (ainda que o autor, contraditoriamente, o qualifique como um índio goitacá, em outra passagem do livro[20]). Em 1865, Alencar escreveu "Iracema", na qual a protagonista era uma índia tabajara. Em 1874, lançou "Ubirajara", baseando-se em costumes tupis. O final do livro descreve uma batalha de duas tribos tupis contra uma tribo tapuia[21].

Os jesuítas foram igualmente expulsos da América Espanhola em 1768, causando a decadência das missões jesuíticas que se haviam transferido para a margem oeste do Rio Uruguai.[22] Mas, no Paraguai, a língua guarani continuou a ser falada pela população, juntamente com o castelhano. Mesmo após um período de proibição da língua durante a ditadura do general Alfredo Stroessner, em meados do século XX. Por volta de 1870, os caapores migraram para o atual estado brasileiro do Maranhão, seguindo o Rio Gurupi[23]. Em 17 de julho de 1873, o Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império Brasileiro decretou o fim das aldeias indígenas no Brasil, sob o argumento de que não existiriam mais índios no país. Isso significou que as terras ocupadas pelos índios brasileiros passaram a ser consideradas legalmente sem dono e, portanto, passíveis de compra através de leilão público[24].

Referências

  1. BUENO, E. Brasil: uma história. 2ª edição revista. São Paulo. Ática. 2003. p. 14,15.
  2. CASCUDO, L. C. Geografia dos mitos brasileiros. 3ª edição. São Paulo. Global. 2002. p. 133.
  3. BUENO, E. Brasil: uma História. Segunda edição revista. São Paulo: Ática, 2003. p.19
  4. http://super.abril.com.br/cultura/lingua-brasil-437755.shtml
  5. CLASTRES, P. Le grand parler. Paris: Éditions du seuil, '975. p. 9
  6. http://www.tekoamboytyitarypu.site90.com/index.php?news&nid=9
  7. ALMEIDA, R. F. T. e MURA, F. Site Povos Indígenas no Brasil. História do contato. Disponível em http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/549. Acesso em 19 de outubro de 2012.
  8. http://www.red.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2668/2217
  9. http://www.staff.uni-mainz.de/lustig/guarani/lingua_tupi.htm
  10. NAVARRO, E. A. Método Moderno de Tupi Antigo. Terceira edição. São Paulo: Global, 2005. p. 104
  11. http://www.campanhaguarani.org.br/historia/palavra.htm
  12. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaapor
  13. Supermanual do escoteiro-mirim. São Paulo: Abril, 1979. p. 357
  14. NAVARRO, E. A. Método Moderno de Tupi Antigo. Terceira edição. São Paulo: Global, 2005. p. 213
  15. http://blognorio.wordpress.com/2010/08/10/mais-curiosidades-sobre-a-baia-de-guanabara/
  16. http://www.fflch.usp.br/dlcv/tupi/tempo_nomina_em_tupi.htm
  17. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/timbira
  18. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/846
  19. ALENCAR, J. O Guarani. Adaptação de André Carvalho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1964. p.141
  20. ALENCAR, J. O Guarani. Adaptação de André Carvalho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1964. p.142
  21. ALENCAR, J. Ubirajara. São Paulo: Ática, 1996. pp. 61-70
  22. http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/companhia-de-jesus/missoes-jesuitas-4.php
  23. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaapor
  24. http://plantasenteogenas.org/community/threads/kariri-xoc%C3%B3-o-povo-da-sagrada-jurema.4376/
  25. NAVARRO, E. A. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo. Global. 2013. p. 152,153.
  26. NAVARRO, E. A. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo. Global. 2013. p. 569.