Apreciação musical/Prefácio/O que não devo fazer
O presente livro é sobre "apreciação" musical e não sobre "ensino" ou "aprendizagem" musical. Não obstante podemos reservar algum espaço para o tempo e métodos dispensados se quiser aprender música. Há basicamente duas formas de o fazer: através de uma escola, conservatório, instituto, etc., e autodidaticamente, sozinho ou com amigos.
Num conservatório tem a ajuda de professores e o tempo de duração das aulas é fixo, coisa que não acontece quando, por exemplo, pegamos na guitarra e vamos tentando aprender por nós mesmos (seja de ouvido ou através de variados livros de teoria musical e prática instrumental). Em ambos os casos gostar de música e querer aprender é condição essencial e obrigatória (parece óbvio mas por vezes não acontece, estudando-se música mais para satisfazer as expectativas dos pais, porque os amigos também estudam ou porque fica bem dizer que "se toca piano e se fala francês").
Para se aprender música (como na maioria dos casos) mais vale a qualidade do que a quantidade. Sabemos que atualmente a nossa vida, apesar das facilidades prestadas pelas novas tecnologias, é muito atarefada e embora apreciemos muito a música, deixamos de a estudar e elaboramos desculpas, culpando o nosso quotidiano, onde não reservamos sequer alguns minutos por dia para nós próprios e para fazer coisas que nos deem prazer (para além da música que também é suposto dar-nos prazer).
Existem também aquelas pessoas que passam horas por dia com uma guitarra ao colo, vendo televisão e comendo, que depois não entendem a razão de não evoluírem na aprendizagem do instrumento. Mais vale 30 minutos de muita atenção e concentração com o instrumento do que longas horas com ele, mas estando distraído.
O estudo de um instrumento deve ser feito de forma contínua, sem intervalos, com concentração e seguindo um método coerente. Não se deve esperar aprender a tocar um instrumento em pouco tempo - numas semanas ou até meses - porque essas esperanças criadas serão defraudadas, podendo levar a pessoa a desinteressar-se. Mais vale dar tempo ao tempo e ir estudando de forma lenta e gradual. Este mesmo estudo deve ter o acompanhamento ou aconselhamento de um profissional que possa sugerir e dar dicas importantes sobre as etapas e os métodos de estudo, de forma séria e responsável. Aqui devemos distinguir que tipo de música pretendemos aprender. Na história do Jazz encontramos muitos músicos que tocaram e gravaram temas sem saberem uma nota musical. Mas: 1º - são raros os exemplos; 2º - sendo o Jazz um gênero musical baseado no improviso, o conhecimento sobre a teoria musical não se impõem com a mesma exigência do que a Música dita "Clássica" ou "Erudita"; 3º - isto acontecia por razões socioeconômicas e não porque os músicos quisessem, ou seja, os negros nos Estados Unidos da América não pertenciam a classes sociais ricas, que pudessem pagar a professores ou a conservatórios; 4º - estes músicos de Jazz cresceram no meio de outros músicos e, como se costuma dizer, "filho de peixe sabe nadar". Muitos acabavam por ouvir, ver e aprender de ouvido a música que todas as noites era tocada em bares e nas famosas "Jam Sessions" (reuniões informais de músicos que se juntavam em qualquer sítio para tocarem juntos pela noite dentro).
Se considerarmos a Música Clássica, o conhecimento teórico revela-se imprescindível para podermos ler e interpretar o que os compositores escreveram. Dominar bem um instrumento é igualmente fundamental, tendo em conta o alto grau de tecnicismo e virtuosismo que algumas obras contém.
A concentração treina-se. Um ambiente silencioso e sem distrações costuma ser o mais propício para a aprendizagem musical e revela-se imprescindível para uma boa apreciação da música. Se reservamos uma hora para ler um livro ou duas horas para ver um filme (e até desligamos as luzes), porque razão não haveríamos de fazer o mesmo quando nos predispomos a ouvir uma obra de música? A ideia e a prática de "ouvir" ou deixar os sons entrarem pelos ouvidos enquanto se fazem outras coisas é legítima e até defensável como meio de descontração, mas não é, de forma alguma, ouvir música. Para apreciar música é fundamental estar concentrado na sua linguagem, sem interferências ou distrações.
A linguagem musical, pela natureza do fenômeno sonoro ou acústico e pelas suas especificidades estéticas, é diferente de todas as outras disciplinas artísticas. A obra musical não permanece estática no tempo e no espaço. Não pode ser parada para ser apreciada num dado momento. Uma obra musical é abstracta na sua substância, iniciando-se num dado momento e acabando passado "X" minutos ou horas. Só no momento em que ela acaba é que o ouvinte poderá ajuizá-la e apreciá-la como um todo. Caso contrário terá apenas o conhecimento fragmentado de uma parcela da obra. Isto não significa que o ouvinte não retire prazer durante a audição ou que não faça leituras dos trechos que vai ouvindo. Mas, tal como num livro por capítulos, só no fim da última nota soar é que uma leitura integral poderá ser feita.
Deste modo e concluindo, as condições ideias para uma apreciação musical passam por manter a concentração e disponibilizar o tempo necessário requerido pela obra que se vai ouvir. Manter uma posição cômoda (por exemplo, deitando-se), apagando as luzes ou desligando a televisão (mesmo que esteja sem som), fechar os olhos para impedir que inconscientemente o cérebro se distrai-a com imagens, são alguns procedimentos adotáveis tendo como objetivo uma boa apreciação musical - falando em termos estritamente sensoriais e sonoros.
Em termos culturais, uma boa apreciação musical pode passar por outros requisitos (não muito diferentes daqueles necessários para outras obras de arte) como por exemplo possuir o máximo de informações e referências históricas, literárias e culturais (grosso modo) concernentes à obra em causa, ao compositor, à época em que foi composta, para quem e para que ocasião foi escrita, etc. Os exemplos paradigmáticos encontram-se nas obras que contém textos, sejam oratórios, cantatas, madrigais, lieder ou óperas, em cujo conhecimento dos textos e do libretto é importante para apreciar as opções musicais que um compositor tomou numa determinada passagem. Da mesma forma, numa obra musical inspirada numa obra literária, conhecer o texto em causa ajuda a completar uma boa leitura musical, como por exemplo na Sonata para Piano nº17 "A Tempestade" em ré menor, Op.31, nº2 de Beethoven, inspirada na peça homônima de Shakespeare.
Contribuir para preencher estes requisitos, fornecendo o máximo de informações tendo em vista boas apreciações musicais, é um dos objetivos deste wikilivro.