Bioquímica/pH, pKa e soluções tampão
Autoionização da água
editarA água sofre autoionização, ionizando-se a H+ e OH-. Na realidade, o próton, H+, não tem existência própria: é capturado por uma molécula de água, originando o ion H3O+ (íon hidrônio ou hidroxônio). Esta ionização é expressa como um equilíbrio químico:
- 2 H2O H3O+ + OH-
A extensão desta ionização é bastante pequena: ambos os íons encontram-se a uma concentração cerca de 10-7 M.L-1.
A capacidade da água em ionizar-se tem consequências de grande relevância fisiológica. Diversas reações bioquímicas dependem da transferência de H+ entre moléculas e enzimas, e a transferência de prótons através das redes formadas por moléculas de água é possibilitada pelo seu pequeno tamanho.
A existência de espécies químicas com possibilidade de se ionizarem em solução altera o equilíbrio da reação de autoionização da água. A extensão do equilíbrio das espécies iônicas H3O+ e OH- é expresso como um normal equilíbrio químico, ou seja, como a razão entre o produto das concentrações dos íons e o produto dos reagentes.
Sendo o solvente também o único reagente, a concentração da água numa solução aquosa é constante: a 25ºC, é igual a 55,5 M. A expressão de equilíbrio pode ser rearranjada da seguinte forma:
em que Kw é designado produto iônico da água. O valor de Keq é também conhecido (1,8×10-16M), pelo que
O conceito de pH
editarQuando [H+]=[OH-], a concentração de cada uma destas espécies é 1,0×10-7M, a 25ºC. Nestas condições diz-se que a solução se encontra a pH neutro.
O pH é definido como o inverso do logaritmo da concentração de H+:
Por esta definição, o pH neutro define-se como sendo numericamente igual a 7 (sem unidade). Quando [H+]<[OH-], a solução terá um pH superior a 7 e diz-se que é básica ou alcalina. Quando [H+]>[OH-], a solução tem um pH inferior a 7, dizendo-se que é uma solução ácida.
Pela definição dada acima, é possível estabelecer uma escala numérica de pH que vai de 1 a 14. Denotar que quando o pH sobe de um valor, na realidade a solução de pH maior é dez vezes mais básica, devido à natureza logarítmica da escala. Dois valores de diferença correspondem a uma diferença de cem vezes, três valores a mil vezes, etc.
De referir que também é possível estabelecer uma escala de pOH, de forma similar à de pH. No entanto, esta não é vulgarmente usada porque em processos biológicos refere-se normalmente a presença ou ausência de prótons, sendo a escala de pH mais prática para o efeito.
Que importância tem o pH de uma solução? Muitas substâncias possuem grupos que podem sofrer protonação, isto é, incorporar um ou mais prótons; da mesma forma, podem sofrer desprotonação, ou seja perder prótons. Em muitos casos, o estado de protonação de uma molécula afeta a sua atividade biológica. Exemplo disto é o estado de protonação de diversas cadeias laterais de aminoácidos que constituem enzimas: por vezes, basta um aminoácido não possuir um próton para uma enzima inteira não funcionar.
O pH de uma solução pode ser medido de várias formas. O método de maior sensibilidade é o uso de um eletrodo de pH, um dispositivo eletroquímico que mede a concentração de H+ em solução. O eletrodo é parcialmente submergido na solução a medir; produz então uma corrente elétrica proporcional à concentração de H+, que é convertida a um valor numérico. Para leituras de menor sensibilidade, podem usar-se fitas de pH ou soluções indicadoras. As soluções indicadoras mudam de cor no chamado ponto de viragem, tendo uma determinada cor abaixo desse valor de pH e outra acima. As fitas de pH usam o mesmo princípio mas em geral usam combinações de indicadores para uma medição mais precisa do pH.
A constante de ionização
editarQualquer solução aquosa tem um determinado valor de pH. Não só a água tem capacidade de se ionizar: muitas substâncias ionizam-se em solução aquosa. Como tal, também podem ser divididas em ácidos, se provocam o abaixamento de pH da solução, e bases, se aumentam o pH.
Neste contexto, um ácido pode ser definido simplesmente como uma substância que doa prótons, enquanto uma base é uma aceitadora de prótons. Um ácido que perde os seus prótons torna-se numa base, enquanto uma base que ganha prótons passa a ser por definição um ácido. Tais pares são denominados pares conjugados ácido/base.
Quando um ácido é forte, dissocia-se totalmente em solução. Se o ácido for representado como HA, a sua dissociação é representada pela equação química
- HA H+ + A-
em que A- é a base conjugada de HA. Em Bioquímica, estes ácidos têm pouco interesse porque não são usuais em sistemas biológicos. São no entanto mais usuais os ácidos fracos, ou seja, aqueles que não se dissociam totalmente em solução. Estabelece-se então um equilíbrio químico entre a espécie protonada e a espécie desprotonada; neste caso, a ionização do ácido é representada como:
- HA H+ + A-
Tal como para a autoionização da água, pode definir-se uma constante de equilíbrio para a ionização de um ácido. Neste contexto, a constante é denominada constante de acidez, Ka.
Um exemplo comum de ácido fraco é o ácido acético, CH3COOH, que se ioniza a ânion acetato e doa um próton nesse processo:
- CH3COOH H+ + CH3COO-
cuja respectiva constante de acidez é então definida por:
Neste caso, é o grupo carboxilo, -COOH, que sofre ionização. Este é um dos grupos encontrados em diversas moléculas biológicas cujas propriedades acídicas são importantes de reconhecer.
Quanto mais forte é um ácido, mais este se dissocia em solução aquosa e maior é Ka. O caso demonstrado assume que o ácido é monoprótico, ou seja, que doa apenas um próton. Este não é sempre o caso, existindo ácidos dipróticos (que doam dois prótons) e tripróticos (doam três prótons). Os ácidos que doam mais de um próton têm constantes de acidez específicas para cada ionização: a primeira ionização tem um Ka1 relativamente baixo, a segunda ionização um Ka2 um pouco maior e a terceira (a haver) tem o Ka3 mais elevado.
Da mesma forma como se definiu pH, é possível definir o pKa de um ácido, sendo o logaritmo do inverso de Ka:
Titulação e zona tampão de um par conjugado ácido/base
editarO pKa é uma grandeza que permite saber a força de um ácido de forma mais intuitiva que através do valor de Ka. Quanto menor é o pKa de um ácido, maior é a sua tendência a ionizar-se e, consequentemente, mais forte é o ácido.
Quando o pH de uma solução aquosa contendo um ácido fraco é igual ao pKa desse ácido, [HA]=[A-]. O valor de pKa de um ácido pode ser facilmente calculado através de uma curva de titulação.
Uma titulação consiste na adição de uma base a uma solução aquosa de um ácido (ou um ácido a uma solução aquosa de uma base) em pequenas quantidades, medindo-se o pH da solução após cada adição. A solução que se adiciona é chamada titulante e a que sofre a adição é titulada. O resultado de tais medições (título) é uma curva de forma sinusoidal em que o centro geométrico corresponde ao pKa do ácido. Num contexto bioquímico, interessa saber as propriedades de ácidos e bases fracos, pelo que as titulações destes são sempre feitas com bases e ácidos fortes, respectivamente.
Por que tem a curva de titulação uma forma sinusoidal? Considere-se que numa solução aquosa de um ácido fraco têm-se dois equilíbrios químicos, nomeadamente o da autoionização da água e a dissociação do ácido:
- 2 H2O H3O+ + OH-
- 2 HA H+ + A-
Esta solução terá um dado pH, de valor relativamente baixo, pois o ácido encontra-se ligeiramente dissociado. Ao adicionar-se uma base forte como por exemplo o hidróxido de sódio (NaOH), esta dissocia-se totalmente em solução, havendo então ânions OH- que podem combinar-se com o H+ "livre", formando H2O. Esta reação força a diminuição da concentração de H+ em solução; pelo princípio de Le Chatelier, o ácido terá de se dissociar um pouco mais para compensar esta "falta" de H+, atingindo-se novo equilíbrio entre ácido e a sua base conjugada. À medida que se acrescenta mais OH-, cada vez mais ácido se dissocia. Chega-se então a um ponto em que metade de HA que existia no início encontra-se sob a forma da sua base conjugada, A-: está-se a meio da titulação, forma adicionados 0,5 equivalentes de OH- ao ácido e o pH neste ponto é igual ao pKa do ácido.
À medida que se acrescenta mais OH-, o pH continua a subir e o ácido a dissociar-se. No fim da titulação, todo o ácido encontra-se dissociado sob a forma de A-.
Como se pode notar, na zona central do gráfico a variação de pH aumenta com a adição de quantidades equivalentes de base. Esta zona é chamada zona tampão e tem grande importância biológica, como será evidente mais adiante. A zona tampão existe porque durante essa parte da titulação existem dois equilíbrios (o da autoionização da água e o da dissociação do ácido) que se compensam mutuamente, fazendo com que a concentração de H+ não se altere significativamente.
É possível relacionar a concentração do tampão com o pH e o pKa através da chamada equação de Henderson-Hasselbalch. Partindo-se da definição de constante de acidez e pondo em evidência a concentração de H+, pode rearranjar-se a relação sob a forma:
Se se aplicar o logaritmo negativo a ambos os termos da equação, tem-se:
Como -logX = pX, a equação pode ser escrita da forma:
ou ainda
sendo esta a forma mais conhecida da equação de Henderson-Hasselbalch. Esta relação matemática explica a forma quasi-sinusoidal da curva de titulação e mostra também que pH = pKa quando as concentrações de ácido e da sua base conjugada são iguais.
As soluções tampão em sistemas biológicos
editarUma solução tampão é uma solução aquosa de um ácido e da sua base conjugada que não sofre variações significativas de pH quando se adicionam pequenas quantidades de ácidos ou bases. São portanto soluções cujo pH ideal se encontra no centro da zona tampão do par conjugado ácido/base. Como já referido, muitos processos biológicos dependem do estado de protonação de moléculas como as enzimas, sendo portanto fundamental o controle rigoroso do pH do meio em que esses processos se desenrolam. Fluidos como o sangue e o citoplasma têm um pH definido, geralmente em torno de 7, e que não muda significativamente graças à presença de diversas substâncias dissolvidas que atuam como tampão.
O citoplasma é rico em proteínas; os grupos laterais ionizáveis de aminoácidos que constituem essas proteínas têm um papel fundamental no tamponamento do meio intracelular. Outras moléculas ionizáveis, como o ATP, ácidos nucleicos e compostos intermediários de vias metabólicas, entre outros, contribuem também para a manutenção de um valor mais ou menos estável de pH no interior da célula.
Dois dos tampões fisiológicos mais importantes, especialmente em fluidos como o sangue, são o tampão de carbonatos e o tampão de fosfatos. O dióxido de carbono (CO2), um gás em condições normais de pressão e temperatura, pode dissolver-se em soluções aquosas formando ácido carbônico, H2CO3. Estabelece-se então o equilíbrio
- CO2 (g) + H2O (l) H2CO3 (aq)
Por sua vez, o ácido carbônico dissocia-se em solução aquosa, estabelecendo-se um segundo equilíbrio:
- H2CO3 HCO3- + H+
A quantidade de íon hidrogenocarbonato (HCO3-) em solução depende em primeira instância da pressão parcial do CO2, pois esta determina o equilíbrio entre CO2 dissolvido e não dissolvido em solução. Assim, quanto mais dióxido de carbono for dissolvido, maior será a acidificação da solução aquosa em que este se dissolve.
O tampão de fosfatos, em situação fisiológica, refere-se especificamente ao equilíbrio
- H2PO4- HPO42- + H+
sendo um tampão natural no citoplasma de todas as células, já que o grupo fosfato está presente em diversas moléculas biológicas.
Em trabalho laboratorial biológico e bioquímico é comum trabalhar-se com soluções tampão para manter o material de estudo (células, enzimas, tecidos, etc.) num meio com pH definido. Diversas soluções tampão podem ser feitas, dependendo do pH a que se pretende manter o material. Para isto. é necessário saber qual o pH ótimo desse material, ou seja, o pH a que se pode detectar um máximo de atividade fisiológica. Esta atividade está relacionada não só com o estado de protonação dos metabolitos envolvidos em reações bioquímicas, mas também (e principalmente) com a estabilidade e estado de protonação das enzimas envolvidas nessas reações. Os tampões de carbonatos e fosfatos são vulgarmente usados, mas outros de origem sintética, como o Tris-HCl (base Tris(hidroxilamina)aminometano, ácido HCl) ou o HEPES (ácido N-(2-hidroxietilo)-piperazina-N'-2-etanesulfónico, uma molécula anfotérica), são também de uso comum.
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