Sistemas Sensoriais/Sistema Auditivo/Processamento Sinal Auditivo

Processamento do Sinal Auditivo

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Após especificar a anatomia do sistema auditivo, esta secção irá analisar os processos fisiológicos que ocorrem durante a percepção de informação acústica e conversão dessa informação em dados que podem ser processados pelo cérebro. A audição começa com ondas de pressão que atingem o canal auditivo até serem percepcionadas pelo cérebro. Esta secção analisa em detalhe o processo de transformação das vibrações em percepção.

Efeito da cabeça

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As ondas sonoras com um comprimento de onda mais curto do que a cabeça produzem uma sombra sonora no ouvido oposto em relação à origem do som. Quando o comprimento de onda é maior do que a cabeça, a difração do som gera intensidades sonoras aproximadamente iguais em ambos os ouvidos.

 
Diferenças na intensidade e no tempo ajudam a localizar a origem do sinal sonoro.

Recepção do som no pavilhão auricular

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O pavilhão auricular, devido à sua forma enrugada, capta as ondas de som no ar de forma diferente consoante estas sejam provenientes da parte de trás ou da frente do mesmo. As ondas sonoras são reflectidas e atenuadas ou amplificadas. Estas diferenças irão ajudar a localizar a origem do som.

No canal auditivo externo, os sons entre 3 e 12 kHz - a gama crucial para a comunicação humana - são amplificados. Este atua como um ressonador que amplifica as frequências recebidas.

Condução do som para a cóclea

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O som que entra no pavilhão auricular na forma de ondas viaja através do canal auditivo até chegar ao início do ouvido médio, assinalado pela membrana timpânica (tímpano). Visto que o ouvido interno está preenchido com fluido, o ouvido médio é uma espécie de dispositivo de equalização de impedâncias de forma a resolver o problema da reflexão da energia sonora na transição de ar para fluido. Por exemplo, na transição do ar para a água, 99.9% da energia sonora recebida é reflectida. Esta quantidade pode ser calculada usando:

 

Ir é a intensidade do som reflectido, Ii é a intensidade do som original e Zk é a resistência à propagação das ondas nos dois meios ( Zar = 414 kg m-2 s-1 e Zágua = 1.48*106 kg m-2 s-1). Três fatores que contribuem para a equalização de impedâncias são:

  • a diferença relativa entre o tamanho do tímpano e da janela oval,
  • o efeito de alavanca dos ossículos do ouvido médio,
  • a forma do tímpano.
 
Mecânica do efeito de amplificação do ouvido médio.

As alterações longitudinais na pressão de ar da onda sonora produzem vibrações na membrana timpânica que, por sua vez, faz oscilar sincronamente os três ossículos encadeados do ouvido médio (martelo, bigorna e estribo). Estes ossos vibram como uma unidade, aumentando a energia desde a membrana timpânica até à janela oval. Além disso, a energia do som é ainda reforçada pela diferença na área entre a membrana e a base do estribo. O ouvido médio actua como um transformador de impedância, alterando a energia sonora recolhida pela membrana timpânica numa força maior e com um movimento de menor amplitude. Este mecanismo facilita a transmissão de vibrações das ondas sonoras no ar para o fluido na cóclea. Esta transformação resulta do movimento de entrada e saída, como um pistão, da base do estribo que está localizado na janela oval. Este movimento realizado pela base do estribo induz o movimento do fluido na cóclea.

Através do músculo estapédio, o menor músculo do corpo humano, o ouvido médio tem a função de porta: a contração do músculo altera a impedância do ouvido médio, protegendo assim o ouvido interno de danos causado por sons altos.


Análise de frequência na cóclea

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Os três compartimentos com fluído na cóclea (Scala Vestibuli, Scala Media, Scala Tympani) estão separados pela membrana basilar e pela membrana de Reissner. A função da cóclea é separar os sons de acordo com o seu espectro e transformá-los num código neural. Quando a base do estribo é empurrada contra a perilinfa do Scala Vestibuli, a membrana de Reissner dobra-se sobre a Scala Media. Este alongamento da membrana de Reissner provoca o movimento da endolinfa dentro da Scala Media e induz o deslocamento da membrana basilar. A separação das frequências de som na cóclea deve-se às propriedades específicas da membrana basilar. O fluido na cóclea vibra (devido aos movimentos de entrada e saída da base do estribo) gerando um movimento ondular nesta membrana. A onda começa na base e progride em direcção ao ápice da cóclea. As ondas transversais na membrana basilar propagam-se com uma velocidade definida como:

 

sendo μ o módulo de cisalhamento e ρ a densidade do material. Uma vez que a largura e a tensão da membrana basilar mudam, a velocidade das ondas que se propagam ao longo da membrana também muda de cerca de 100 m/s perto da janela oval para 10 m/s perto do ápice.

Existe um ponto na membrana basilar onde a amplitude da onda diminui abruptamente. Neste ponto, a onda de som no fluído coclear produz o deslocamento máximo (amplitude máxima) da membrana basilar. A distância percorrida pela onda antes de chegar a este ponto característico depende da frequência do som original. Portanto, cada ponto sobre a membrana basilar corresponde a um valor específico da frequência de estimulação. Um som de baixa frequência percorre uma distância maior do que um som de elevada frequência até atingir o seu ponto característico. As frequências estão distribuídas ao longo da membrana basilar com altas frequências na base e baixas frequências no ápice da cóclea.

 
A posição x da amplitude máxima da onda em movimento corresponde à frequência do estimulo (de 1 para 1).


Transdução sensorial na cóclea

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A maioria dos sons do quotidiano são compostos por múltiplas frequências. O cérebro processa cada uma das frequências, e não os sons completos. Devido às suas propriedades não homogéneas, a membrana basilar aplica uma aproximação da Transformada de Fourier. Assim, o som é dividido nas suas diferentes frequências, e cada célula ciliada da membrana corresponde a uma certa frequência. A intensidade da frequência é codificada pela taxa de activação da fibra aferente correspondente. Tal deve-se à amplitude da onda na membrana basilar, que depende da intensidade do som que entra no ouvido.

 
Mecanismo de transdução numa célula ciliada auditiva ou vestibular. A inclinação da célula ciliada em direção ao quinocílio abre os canais de iões de potássio. Este evento altera os potenciais de receptor da célula ciliada. A consequente emissão de neurotransmissores pode provocar um potencial de ação (PA) na célula pós-sináptica.
 
As células ciliadas auditivas são muito semelhantes às células do sistema vestibular. Esta figura é uma imagem de microscopia eletrónica das células ciliadas do sáculo de um sapo.
 
Exemplo adicional das células ciliadas de um sapo.

As células sensoriais do sistema auditivo, designadas por células ciliadas, estão localizadas ao longo da membrana basilar no interior do órgão de Corti. Cada órgão de Corti contém cerca de 16.000 células deste tipo, inervadas por aproximadamente 30.000 fibras nervosas aferentes. Existem dois tipos de células ciliadas com diferenças anatómicas e funcionais: as células ciliadas internas e externas. Ao longo da membrana basilar, estes dois tipos estão dispostos numa fila de células internas e três a cinco filas de células externas. A maior parte da inervação aferente resulta das células ciliadas internas, enquanto que a maioria da inervação eferente destina-se às células ciliadas externas. As células ciliadas internas influenciam a taxa de activação de cada fibra nervosa auditiva que se liga a estas células ciliadas. Desta forma, as células ciliadas internas transferem a informação sonora para os centros nervosos auditivos superiores. Por outro lado, as células ciliadas externas amplificam o movimento da membrana basilar injectando energia no movimento da membrana e reduzindo as perdas por fricção, mas não contribuem para a transmissão de informação sonora. O movimento da membrana basilar deforma os estereocílios (cílios das células ciliadas) e diminui (despolarização) ou aumenta (hiperpolarização) os potenciais intracelulares das células ciliadas, consoante a direcção de deflexão. Quando estereocílios estão numa posição de repouso, há uma corrente de estado estacionário que flui pelos canais das células. Assim, o movimento dos estereocílios modula o fluxo de corrente em torno desta corrente estacionária.

Desta forma, os modos de acção dos dois tipos de células ciliadas são:

  • Células ciliadas internas:

A deflexão dos estereocílios das células ciliadas abre mecanicamente os canais de iões permitindo que alguns iões de potássio carregados positivamente (K+) entrem na célula e a despolarizem. Ao contrário de outras células electricamente activas, a célula ciliada não desencadeia um potencial de acção. Neste caso, o influxo de iões positivos vindos da endolinfa na Scala Media despolarizam a célula, gerando um potencial de receptor. Este potencial de receptor abre os canais de cálcio controlados por diferença de potencial eléctrico; posteriormente, iões de cálcio (Ca2+) entram na célula e desencadeiam a libertação de neurotransmissores na terminação basal da célula. Os neurotransmissores estão difundidos através do espaço estreito entre a célula ciliada e um terminal nervoso, onde estão ligados a receptores e assim desencadeiam potenciais de ação no nervo. Desta forma, o neurotransmissor aumenta a taxa de activação no oitavo (VIII) nervo craniano e o sinal mecânico sonoro é convertido num sinal eléctrico nervoso.
A repolarização da célula ciliada é efectuada de uma maneira especial. A perilinfa na Scala Tympani possui uma concentração muito baixa de iões positivos. O gradiente electroquímico faz com que os iões positivos fluam pelos canais até à perilinfa. (ver também: Wikipedia Hair cell)

  • Células ciliadas externas:

Nas células ciliadas externas dos seres humanos, o potencial de receptor desencadeia vibrações activas do corpo da célula. Esta resposta mecânica aos sinais eléctricos é chamada de motilidade elétrica somática e impulsiona oscilações no comprimento da célula, que ocorrem com a frequência do som original e proporcionam uma amplificação da realimentação mecânica (feedback mecânico). As células ciliadas externas apenas evoluíram nos mamíferos. Na ausência de células ciliadas externas, a sensibilidade diminui cerca de 50 dB (devido a maiores perdas por fricção na membrana basilar que amorteceriam o movimento da membrana). Estas também melhoraram a selectividade de frequência (discriminação de frequência), que é especialmente benéfica para os seres humanos, porque permite a fala sofisticada e música. (ver também: Wikipedia Hair cell)

Sem estimulação externa, os feixes nervosos auditivos descarregam os potenciais de ação numa sequência temporal aleatória. Esta ativação aleatória é chamada de atividade espontânea. As taxas de descarga espontânea das fibras variam de muito lentas a taxas de até 100 ativações por segundo. As fibras são classificados em três grupos dependendo se disparam espontaneamente a taxas elevadas, médias ou baixas. Fibras com taxas espontâneas elevadas (> 18 por segundo) tendem a ser mais sensíveis à estimulação sonora do que outras fibras.

Via auditiva dos impulsos nervosos

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Lemnisco lateral a vermelho, ligado ao núcleo coclear, ao núcleo olivar superior e ao colículo inferior. Visto de trás.

Assim, nas células ciliadas internas, o sinal mecânico sonoro é finalmente convertido em sinais eléctricos nervosos. As células ciliadas internas estão ligadas às fibras nervosas auditivas cujos núcleos formam o gânglio espiral. No gânglio espiral, os sinais eléctricos (picos eléctricos, potenciais de ação) são gerados e transmitidos ao longo do ramo coclear do nervo auditivo (VIII nervo craniano) para o núcleo coclear do tronco cerebral.

A partir deste ponto, a informação auditiva é dividida em pelo menos dois fluxos:

  • Núcleo coclear ventral:

Um dos fluxos é o núcleo coclear ventral que depois se divide no núcleo coclear posteroventral (NCPV) e no núcleo coclear anteroventral (NCAV). As células do núcleo coclear ventral projectam para uma coleção de núcleos chamado complexo olivar superior.

Complexo Olivar Superior: Localização sonora

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Considera-se que o complexo olivar superior - uma pequena massa de substância cinzenta - esteja envolvido na localização sonora no plano azimutal (ou seja, o seu ângulo para a esquerda ou para a direita). Existem duas indicações principais para a localização sonora: diferenças interaurais de intensidade (DII) e diferenças interaurais temporais (DIT). O DII mede as diferenças na intensidade sonora entre os ouvidos. Esta técnica funciona para frequências elevadas (acima de 1.6 kHz), onde o comprimento de onda é menor que a distância entre os ouvidos, causando uma região de sombra na cabeça - onde os sons de alta frequência atingem o ouvido oposto com menor intensidade. Os sons de baixa frequência não produzem esta região de sombra, visto que envolvem a cabeça. No entanto, devido ao seu comprimento de onda ser maior do que a distância entre os ouvidos, existe uma diferença de fase entre as ondas sonoras que entram nos ouvidos - a diferença de tempo medida pelo DIT. Este mecanismo funciona de forma bastante precisa para frequências inferiores a 800 Hz, onde a distância entre os ouvidos é menor que metade do comprimento de onda. A localização sonora no plano mediano (frente, acima, atrás, abaixo) é auxiliada pelo ouvido externo, que forma filtros direcionais seletivos.

No complexo olivar superior, as diferenças temporais e de intensidade da informação sonora em cada ouvido são comparadas. As diferenças na intensidade sonora são processadas nas células do complexo olivar superior lateral e as diferenças temporais (atrasos no tempo de execução) no complexo olivar superior medial. Os seres humanos conseguem detectar diferenças de sincronização entre o ouvido esquerdo e direito até 10 μs, o que corresponde a uma diferença de localização sonora de cerca de um grau (1º). Esta comparação de informações sonoras de ambos os ouvidos permite determinar a direção da origem do som. O complexo olivar superior é o primeiro nódulo onde os sinais de ambos os ouvidos se encontram e podem ser comparados. De seguida, o complexo olivar superior envia as informações para o colículo inferior através de uma via de axónios chamada lemnisco lateral. A função colículo inferior é integrar informações antes de enviá-las para o tálamo e córtex auditivo. É interessante notar que o colículo superior, próximo deste, demonstra uma interação dos estímulos auditivos e visuais.

  • Núcleo Coclear Dorsal:

O núcleo coclear dorsal (NCD) analisa a qualidade do som e projecta directamente através do lemnisco para o colículo inferior.

A partir do colículo inferior, a informação auditiva do núcleo coclear ventral e dorsal procede para o núcleo auditivo do tálamo, que é o núcleo geniculado medial. O núcleo geniculado medial transfere a informação para o córtex auditivo primário, a região do cérebro humano responsável pelo processamento da informação auditiva, localizado no lóbulo temporal. O córtex auditivo primário é o primeiro elemento envolvido na percepção consciente do som.

Córtex auditivo primário e áreas auditivas de ordem superior

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A informação sonora atinge o córtex auditivo primário (áreas de Brodmann 41 e 42), que é o primeiro elemento envolvido na percepção consciente do som. Este está organizado tonotopicamente e é responsável pelos fundamentos da audição: a altura e o volume. Dependendo da natureza do som (voz, música, ruído), este é encaminhado para as áreas auditivas de ordem superior. Os sons da fala são processados ​​na área de Wernicke (área de Brodmann 22). Esta área é responsável pela compreensão da linguagem escrita e falada (compreensão verbal). A produção de som (expressão verbal) está relacionada com a área de Broca (áreas de Brodmann 44 e 45). Os músculos que produzem o som necessário para falar são controlados pela área facial do córtex motor, que são regiões do córtex cerebral responsáveis pelo planeamento, controlo e execução das funções motoras voluntárias.

 
Superfície lateral do cérebro com a numeração das áreas de Brodmann.