Introdução aos Conceitos de Filosofia/Lição III
Razão
editarAqui será tratada estritamente a “razão” no sentido de “faculdade cognitiva”, e não nos sentidos de “motivo” ou “divisão”, mesmo que eventualmente os filósofos façam uso da palavra nestes sentidos.
Salienta-se que mesmo no sentido de “faculdade cognitiva”, o uso que os filósofos fazem da palavra “razão” no geral é muito mais estrito que o feito na biologia. Mesmo que apenas um animal racional possa deliberar para cometer um ato de vandalismo, fazê-lo não é racional (na acepção que os filósofos têm do termo). Ou ainda, apenas um animal racional pode escrever livros e desvendar as leis da Natureza, mas nem todos os livros são expressão da racionalidade, e há quem alegue que não é a razão a faculdade cognitiva que permite-nos fazer o segundo.
Para ilustrar as propriedades que os filósofos atribuem à faculdade cognitiva que chamam de razão, valer-nos-emos da seguinte estória:
Diz-se que Thomas Hobbes, quando jovem, estava a folhear os Elementos (obra de geometria escrita na Antigüidade por Euclides), quando se deparou com um teorema do qual discordou. A demonstração deste remetia a outros teoremas, cujas demonstrações remetiam a outros... Até chegar em teoremas cujas demonstrações remetiam aos próprios 5 postulados. Hobbes viu-se obrigado a concordar com os postulados e, uma vez aceitando as demonstrações, a também concordar com o teorema.
Ou seja, a razão, tal como o conceito foi usado durante boa parte da história da filosofia, é uma faculdade cognitiva que:
1º) Conduz inexoravelmente dos princípios às conclusões. É a razão que conduz das premissas “Todo A é B” e “Todo B é C” à conclusão “Todo A é C”. É a razão que conduz de “2x+10=20” a “x=5”, dos postulados de Euclides ao teorema de Pitágoras.
2º) É a razão que garante seus próprios princípios gerais. É a razão que garante os postulados de Euclides, que a contradição deve ser rejeitada (ver Princípio de não-contradição), que toda coisa é igual a si mesma (ver Princípio de identidade) etc.
Segundo esta perspectiva, a razão também estrutura todo conhecimento válido. Seja a geometria euclidiana, a física newtoniana ou o sistema planetário copernicano, todas as proposições (teoremas, leis, princípios, axiomas etc.) que constituem estes ou qualquer outro sistema de conhecimento válido são consistentes entre si (não se contradizem).
Entre aqueles que compartilham deste conceito de razão, uma fonte de divergência é acerca de sua abrangência. A indução é racional? A intuição é? Qual papel da razão na gênese do conhecimento? Estes pontos serão melhor explorados ao longo deste capítulo.
Por exemplo, segundo o filósofo escocês w:David Hume, a razão não exerce nenhum papel na heurística do conhecimento acerca das questões de fato (assunto do qual trataremos mais adiante).
Conhecimento
editarSegundo Platão, o conhecimento é a crença justificada em verdades. Por exemplo, suponhamos que alguém acredita que o etanol sob 1 atm entra em ebulição a 78.4 °C. Podemos questionar porque ele sustenta esta crença. Digamos que a resposta seja "Porque eu, munido de um termômetro e um barômetro, medi diversas vezes o etanol fervendo, e sob 1 atm ele sempre o fez a 78.4°C". Se aceitarmos esta justificativa, dizemos que ele tem um conhecimento válido acerca da ebulição do etanol. Caso não aceitemos, dizemos que ele não tem um conhecimento válido sobre este assunto.
Quais justificativas são aceitáveis é a maior divergência na epistemologia. Desde a Antigüidade até a Era Contemporânea, foram propostos os mais diversos critérios de justificação do conhecimento. Alguns até defendem justificativas distintas para tipos distintos de conhecimento.
Outra fonte de divergência acerca da descrição que demos de conhecimento é a crença e a verdade.
Segundo alguns filósofos, a crença inflexível é inconveniente para o conhecimento rigoroso. Este deve sempre estar aberto à revisão e reformulação. Nas palavras de Lakatos: "Confiança cega em uma teoria não é uma virtude intelectual: é um crime intelectual"1. Assim, estes filósofos recomendam um certo grau de ceticismo frente ao próprio conhecimento. Usando o exemplo da ebulição do etanol, um pouco de ceticismo poderia levantar questões que inspirem novos experimentos, o que, eventualmente, levaria até a um refinamento da teoria: "Será que a experimentação não foi viciada? Poderia haver um terceiro fator que influencie a fusão além da temperatura e pressão, o qual teria sido ignorado por ser constante em todos os experimentos. Talvez seja melhor refazer o experimento em latitudes diferentes, sob diferentes graus de incidência de luz etc.".
Também é comum a objeção de que "crença" remete ao um estado da mente humana não condizente com o caráter objetivo do conhecimento. Assim o conhecimento estaria mais para a própria verdade justificada, ou mesmo a justificação da verdade.
Devido ao mesmo ceticismo esboçado acima (o qual trataremos melhor mais adiante), algumas correntes de pensamento não exigem (ou mesmo tomam como impossível) que o conhecimento (ou ao menos alguns gêneros de conhecimento) esteja necessariamente atrelado a uma verdade inequívoca. Por exemplo, para o positivismo-lógico, a ciência lida com a probabilidade de ser verdade; enquanto para o racionalismo crítico, a ciência refina suas pretensões de verdade.
a priori e a posteriori
editarO conhecimento tende a ser dividido em duas categorias: Formal e Empírico. David Hume preferiu chamá-los respectivamente de "relações de idéias" e "questões de fato".2 Já Immanuel Kant chamou-os respectivamente de "a priori" e "a posteriori"3. Dentro da primeira categoria de conhecimento estaria a Matemática (Lógica, Geometria, Aritmética, Álgebra etc.) e pretensamente a Metafísica. Já a segunda contém as Ciências Naturais (Física, Química, Biologia etc.), as Ciências Humanas (História, Sociologia, Antropologia etc.) e o conhecimento ordinário de mundo.
Podemos listar algumas diferenças entre as duas categorias de conhecimento quem vêm sendo apontadas ao longo da história da filosofia:
- A verdade das proposições que constituem o conhecimento a priori é determinada de forma puramente racional. Sendo a verdade destas auto-evidente, no caso dos juízos analíticos a priori, ou sendo a demonstração a forma mais rigorosa de determinação, no caso dos juízos sintéticos a priori. Já a verdade (ou pretensão de verdade ou chance de ser verdade) do conhecimento a posteriori é determinada pela experiência sensível, sendo o experimento a forma mais rigorosa de determinação.
- A base dos sistemas que compõe o conhecimento a priori (sistemas de geometria, de lógica, de metafísica etc.) são os axiomas dos quais os teoremas são deduzidos. Já a base do conhecimento a posteriori são os fatos particulares a partir dos quais as leis da Natureza são induzidas.
- David Hume apontou2 que a suposição de fatos contrários às nossas experiências particulares que servem de base para o conhecimento das questões de fato é inteligível. Contudo, o mesmo não procede para o conhecimento acerca das relações de idéias, pois toda a suposição de relações contrárias às verdadeiras acarreta em contradição. Por exemplo, "um dia de 25 horas", "um corvo branco", "um imã que atrai alumínio" e "dois corpos que se repelem na proporção direta de suas massas" são suposições inteligíveis. Contudo, "um triângulo cuja soma dos ângulos internos seja diferente da soma de dois ângulos retos" ou "duas duplas que formam um quinteto" são suposições ininteligíveis.
- O caráter ontológico das entidades estudadas por cada categoria de conhecimento também é apontado ao longo da história da filosofia como distintos. Hume, por exemplo, alega2 que as entidades tratadas no conhecimento acerca das relações de idéias existem apenas no intelecto humano. A saber: números, figuras geométricas, argumentos, tautologias etc.
Para exemplificar todos os pontos listados:
"O etanol sob 1 atm entra em ebulição a 78.4 °C" é um conhecimento a posteriori. Não é algo que pode ser demonstrado por meio de métodos puramente racionais, mas que se descobre por meio de experimentos.
"Todo conjunto contém ou é igual ao conjunto vazio" é um conhecimento a priori. Pode ser demonstrado assim:
* Nenhum elemento pertence ao conjunto vazio. (Premissa maior) * Um conjunto A está contido ou é igual a um conjunto B se e somente se não há um elemento que pertença a A mas não pertença a B. (Premissa menor) * Supondo que o conjunto vazio não esteja contido em um conjunto arbitrário C, deduz-se por meio da segunda premissa que existe um elemento que pertence ao vazio e não pertence a C. * Como a suposição acarreta em contradição com a primeira premissa, então a negamos, concluindo que o conjunto vazio está contido ou é igual a qualquer conjunto.
Esta lista é apenas um apanhado geral e não é unânime. A História da Filosofia é marcada por filósofos que divergem desta demarcação. Karl Popper rejeita que o conhecimento empírico esteja fundamentado na indução. Quais tipos de demonstração matemática são aceitáveis é um ponto de divergência dentro da filosofia da matemática. Os construtivistas, por exemplo, rejeitam provas por redução ao absurdo, como a usada de exemplo acima. Ainda no campo da filosofia da matemática, vários filósofos discordam de Hume acerca da existência dos números se encerrar no intelecto humano. Há ainda aqueles que consideram cada uma dessas categorias de conhecimento mais ou menos abrangente que a determinada por esta lista.
Por um lado, encontram-se empiristas radicais, como John Stuart Mill, segundo os quais todo o conhecimento, inclusive o matemático, deriva da experiência sensível. Assim, segundo estes, sabemos que 2+2=4 porque na Natureza temos a experiência que duas duplas unidas formam um quarteto. Segundo Aristóteles, a matemática não seria nada além do que a física destituída de substância.
Por outro lado, há filósofos, tais como Gottlob Frege e Kant, que além de rejeitarem arduamente o empirismo matemático, defendem que o conhecimento empírico depende da racionalidade. Kant afirma que as idéias de tempo e espaço são formas a priori do conhecimento.4 Ou seja, segundo Kant, somos capazes de perceber que as coisas são exteriores umas as outras e que os eventos se sucedem porque temos o conhecimento a priori do tempo e espaço.
Referências
editar- Science and Pseudoscience (incluindo um arquivo de áudio MP3) – Imre Lakatos (1973)
- An Enquiry Concerning Human Understanding, David Hume (1748)
- Kritik der reinen Vernunft, Immanuel Kant (1787)
- Kritik der Urteilskraft, Immanuel Kant (1790)
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